16 de outubro de 2025
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“A Longa Marcha”: a assustadora ética do mundo competitivo

Baseado em livro do mestre do terror e suspense Stephen King, "A Longa Marcha" é uma das ótimas surpresas do cinema em 2025.
15 de outubro de 2025
Elenco é o ponto alto do filme. Foto: reprodução.

Ainda está em cartaz em muitos cinemas brasileiros o filme “A Longa Marcha: caminhe ou morra”, baseado no livro homônimo do escritor Stephen King, lançado no final dos anos 1970. A adaptação para a telona foi dirigida por Francis Lawrence, que tem no currículo vários filmes da saga “Jogos Vorazes” e que está sendo apontado como o diretor do tão aguardado “Constantine 2”, com Keanu Reeves.

Nos Estados Unidos, em um futuro distópico governado por um regime autoritário, cem jovens participam anualmente de uma competição mortal conhecida como A Longa Marcha: uma prova em que devem caminhar sem parar, sob pena de execução caso diminuam o ritmo. Entre eles está Ray Garraty (Cooper Hoffman), que enfrenta a exaustão física e psicológica enquanto a jornada transforma camaradas em rivais e a esperança em desespero. À medida que o caminho se alonga, a marcha revela-se como uma tortura. Um a um, os participantes vão diminuindo o ritmo, ficando abaixo dos 5 km/h exigidos e, por isso, executados com tiros na cabeça – sem misericórdia.

É difícil dizer quando se passa o filme, mas parece que no final dos anos 1970 ou início dos anos 1980, anos depois que os Estados Unidos perderam a “grande guerra”, que pode ser tanto a Segunda Guerra Mundial ou a Guerra Fria. Esse Estados Unidos alternativo caiu em decadência. Não é mais grande economicamente, não tem força política como antes e sua população amarga um regime protofascista obcecado em ser grande novamente. Isso está posto o tempo inteiro nas falas do grande comandante da marcha, “O Major”, vivido por Mark Hamill”. Por isso tudo, o filme tem sido, com razão, associado ao atual momento dos Estados Unidos de Donald Trump e seu “Make America Great Again”, além da obediência, sacrifício e barbárie como espetáculos de massa.

Eu realmente acho que A Longa Marcha é uma ótima metáfora para os Estados Unidos de Trump, com seu autoritarismo performático e sua espetacularização da violência, mas existe uma outra dimensão do filme, que ainda não vi ninguém mencionando, e que reverbera para além do contexto norte-americano. O filme de Lawrence é também uma poderosa alegoria da lógica empresarial e empreendedora do neoliberalismo contemporâneo, que transforma a competição em valor absoluto e o sofrimento em virtude.

Os participantes da marcha, que seguem até a exaustão acreditando que o sacrifício individual será recompensado com glória e reconhecimento, espelham o discurso dos gurus de nosso tempo, dos “legendários” a pastores neopentecostais, que pregam a meritocracia como caminho para a salvação – espiritual ou financeira. Essa busca, que é sempre individual, purifica a alma do competidor como um exercício de fé do Antigo Testamento: caminhe sozinho, até os pés não aguentarem, tenha fé no caminho e mesmo se cair, saiba que alguém vai se orgulhar de você. Apenas um poderá encontrar a salvação e, como diz O Major, “qualquer um pode ganhar – qualquer um”.

Ora, nada mais weberiano do que isso: o trabalho árduo, a disciplina e a poupança (aqui, do fôlego, da comida e até mesmo das necessidades mais básicas, como urinar e defecar) são os sinais de que a pessoa é um “eleito” e que sua salvação é garantida. Mas a realidade, no fundo, é que todos caminham até o colapso, celebrando a própria destruição como sinal de sucesso. E tudo isso televisionado para o país inteiro.

Excelente surpresa de 2025

A Longa Marcha é uma das grandes boas surpresas no cinema em 2025. O filme chegou devagarinho, soando como mais um filme de competição brutal, ainda mais porque é dirigido por Lawrence, que tem domínio no assunto, mas entrega algo completamente diferente, original e contemporâneo. Além da boa direção e incrível fotografia, o filme conta com uma baita seleção de elenco, tanto o principal quanto o de apoio.

No papel central está Cooper Hoffman, filho do ator Phillip Seymour Hoffman, falecido em 2016, interpretando Raymond “Ray” Garraty, o protagonista cuja motivação pessoal impulsiona grande parte da narrativa. Ao seu lado, caminha (literalmente) David Jonsson, de “Alien: Romulus”, assume o papel de Peter McVries, companheiro de caminhada e contraponto moral de Ray.

Entre os demais caminhantes, destacam-se Garrett Wareing como Stebbins, Tut Nyuot como Arthur Baker, Charlie Plummer como Gary Barkovitch e Ben Wang como Hank Olson. Em papéis adultos de peso, o elenco conta com Mark Hamill interpretando o enigmático Major — figura de autoridade que conduz a marcha — além de Judy Greer e Josh Hamilton nos papéis dos pais de Ray.

Hoffman e Jonsson estão incríveis e certamente podem ser descritos como duas grandes promessas do cinema norte-americano. Mas Jonsson se sobressai ainda mais. É ele quem, com o perdão da palavra, dá o ritmo ao filme. Falastrão, engraçado e com bom coração, seu personagem conecta todos os outros e é gatilho para as maiores reflexões do filme. Ele não esmorece: aguenta firme as provações e apoia os demais, porque, no curso da longa caminhada, eles acabam se percebendo como amigos, e não como adversários ou competidores. Essa tomada de consciência os leva a questionar a própria marcha e seus objetivos pessoais nela, desde a busca por vingança até recompensas financeiras e reconhecimento parental.

O triste, contudo, é que o final – que difere um pouco do desfecho do livro – quebra esses personagens, sem que o sistema que desafiaram quebre necessariamente. O ato derradeiro do “grande vencedor” da marcha (que nada tem de vencedor) ganha e perde ao mesmo tempo. Ganha, porque ele consegue um tipo de justiça, mas perde porque, ao fazer essa justiça, ele sacrifica aquilo que para ele parecia inegociável. Injusto? Muito provavelmente. Inverossímil? Para mim, nem um pouco.

Bruno Leal

Bruno Leal

Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor do Departamento de História da Universidade de Brasília. É editor do portal Café História e colabora esporadicamente para o Bonecas Russas.

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