Ontem, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o histórico julgamento em que o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros réus foram condenados por crimes relacionados à tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023. O voto decisivo da ministra Cármen Lúcia foi elogiado pela clareza, consistência e fundamentação jurídica, política e histórica. Em seu longo discurso, ela fez referência a pelo menos dois livros de historiadores que ajudam a situar o golpe não como um ato isolado, mas como desdobramento de tradições autoritárias no Brasil.
O primeiro foi A Máquina do Golpe, da historiadora Heloísa Starling, publicado pela Cia das Letras, citado pela Ministra ao afirmar que os atos de 8 de janeiro não foram espontâneos ou pontuais, mas parte de um mecanismo que vem sendo montado ao longo do tempo para abalar instituições democráticas. A ministra disse que o livro mostra que “não se faz um golpe em um dia. E o golpe não acaba em uma semana, nem em um mês”, ressaltando que há processos prévios e sustentados que alimentam essas rupturas.
O segundo livro foi Utopia Autoritária Brasileira, de Carlos Fico, publicado pelo Selo Crítica, mencionado indiretamente quando Cármen Lúcia falou do historiador como alguém que analisa essas tendências persistentes – o intervencionismo militar, o desprezo pela política e o acreditar que a sociedade “não está preparada” para se governar –, precisando supostamente de tutela militar, traços que Fico descreve como constitutivos de uma cultura autoritária no Brasil.
Fico e Starling estão entre os principais historiadores do período republicano brasileiro. Fico é professor do Instituto de História da UFRJ, enquanto Starling é professora do Departamento de História da UFMG. Ambas as obras ganham destaque não apenas pelo valor acadêmico, mas por oferecerem enquadramentos históricos que ajudam a entender o presente. A Máquina do Golpe aprofunda como discursos, atores e instituições se preparam para rupturas democráticas, enquanto Utopia Autoritária Brasileira faz um panorama amplo de como tais rupturas têm raízes históricas persistentes no país, baseadas na ideia de tutela militar.
O julgamento
O julgamento em si foi concluído nesta quinta-feira, 11 de setembro de 2025. A Primeira Turma do STF formou maioria de 4 votos a 1 para condenar Bolsonaro e os demais réus pelos crimes de tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. O único voto divergente foi de Luiz Fux.
Cármen Lúcia abriu seu voto evocando que esse é um julgamento que “pulsa o Brasil que me dói”, conectando passado, presente e futuro ao afirmar que o país atravessa, por vezes, rupturas legais e democráticas. Em seu discurso, ela conclamou pela aplicação plena da lei, sem exceções, para aquelas pessoas acusadas de arquitetar e executar atos que atentam contra a ordem constitucional.
“A procuradoria fez prova cabal de que o grupo liderado por Jair Messias Bolsonaro, composto por figuras-chave do governo, das Forças Armadas e de órgãos de inteligência, desenvolveu e implementou um plano progressivo e sistemático de ataque às instituições democráticas com a finalidade de prejudicar a alternância legitima de poder nas eleições de 2022, minar o exercício dos demais poderes constituídos, especialmente o Poder Judiciário”, disse.
A escolha de mencionar esses livros pode ser vista como uma estratégia de fundamentar o voto não apenas em provas e leis, mas em uma narrativa histórica, interligando os eventos recentes com processos anteriores que no Brasil institucionalizaram comportamentos de deslegitimação de instituições democráticas.